Transtornos infantis: contribuições da teoria polivagal

Venho estudando uma teoria recente que vem sendo apresentada pelos neurocientistas como uma nova compreensão da regulação dos comportamentos humanos em seus aspectos neurobiológicos. Muito ligada às pesquisas sobre apego, a teoria polivagal está dirigida não só à compreensão das situações de colapsos emocional decorrentes de acidentes, traumas, assaltos e outros incidentes dramáticos como também das mais corriqueiras em que se dá o desenvolvimento humano, como por exemplo as escolas, a vida familiar e social. A teoria polivagal traz elementos ainda mais consistentes para tomarmos seriamente a descoberta de que a falta de sincronia crônica com cuidadores ou o fracasso em estabelecer ligações precoces seguras de apego leva a criança a uma capacidade diminuída em regular as emoções negativas no futuro.

Trago assim um trecho do livro de Stephen Porges, que sem sombra de dúvida vai iluminar atual e futuramente muitas das práticas em saúde mental. 

Neurocepção e distúrbios mentais

(…) De forma ideal, a neurocepção de um bebê quanto ao seu ambiente mostra um local seguro para ser explorado. Mas mesmo que a sua neurocepção o avise – corretamente –  de perigo quanto a um cuidador “assustado ou assustador”, o bebê pode tomar certas medidas defensivas, mesmo que provavelmente elas não sejam eficazes e que provavelmente sejam psicologicamente dispendiosas. O que acontece quando a própria neurocepção é deficiente? Do ponto de vista teórico, a neurocepção defeituosa – ou seja, a incapacidade de detectar corretamente se o ambiente é seguro ou se outra pessoa é confiável – pode ser a raiz de vários distúrbios psiquiátricos. 

  • As áreas do córtex temporal que são responsáveis por inibir as reações de luta, fuga e congelamento não são ativadas nas pessoas com autismo ou esquizofrenia, que têm dificuldades de envolvimento social.

  • As pessoas com distúrbio de ansiedade e depressão têm o comportamento social comprometido, dificuldades na regulação da frequência cardíaca, conforme refletido em medidas de controle vagal do coração e expressividade facial reduzida.

  • Crianças mal-tratatadas e institucionalizadas com transtorno afetivo reativo tendem a serem inibidas (emocionalmente retraídas e indiferentes) ou desinibidas (com comportamento de apego indiscriminado; Zeanah, 2000). Os dois tipos de comportamentos sugerem uma neurocepção defeituosa do risco no ambiente.

Pesquisas recentes sobre crianças em orfanatos romenos estimularam o interesse nos transtornos afetivos reativos e em descobrir formas de remediar os distúrbios devastadores no seu desenvolvimento social. Se o comportamento dessas crianças sugere uma neurocepção defeituosa na interpretação do risco no ambiente, existem características no ambiente que podem ajudar as crianças a se sentirem mais seguras e então começarem a avançar em direção a um comportamento social normal?

Um estudos sobre crianças romenas que está sendo feito em um orfanato (Smyke, Dumitrescu e Zeanah, 2002) ilustra a utilidade do construto da neurocepção no entendimento do desenvolvimento de comportamentos afetivos normais e atípicos. Os pesquisadores avaliaram dois grupos de crianças institucionalizadas e os compararam com crianças que nunca tinham sido institucionalizadas. Um grupo de crianças institucionalizadas (a unidade-padrão) foi cuidado de acordo com os padrões prevalentes: 20 cuidadores diferentes trabalhavam em dois turnos alternados, com cerca de 3 cuidadores para 30 crianças em cada turno. Um segundo grupo de crianças, a unidade-piloto, consistia de 10 crianças com 4 cuidadores. Se aplicarmos nosso conceito de neurocepção a esse estudo, poderíamos supor que cuidadores familiares seriam essenciais para a neurocepção de segurança das crianças – o que, por sua vez, seria essencial para a promoção de um comportamento social adequado. Especificamente a capacidade da criança reconhecer o rosto, a voz e os movimentos do cuidador (as características que definem uma pessoa segura e confiável) iria movimentar o processo de controle do sistema límbico e permitir o funcionamento do sistema de envolvimento social.

Os dados do estudo de Smyke et. al.. (2002) apoia nossa hipótese. Quanto maior o número de cuidadores que tiverem contato com as crianças, maior será a incidência de transtorno afetivo reativo entre elas. As crianças da unidade-padrão tinham mais probabilidade do que os outros dois grupos de ter transtorno afetivo reativo. Em alguns índices de transtorno afetivo reativo, as crianças do grupo-piloto não se diferenciaram das crianças que nunca haviam sido institucionalizadas. Essas descobertas sugerem que assim que entendermos as características contextuais e sociais que inibem os circuitos neurais que desencadeiam as estratégias comportamentais defensivas poderemos “otimizar” o desenvolvimento do comportamento pró-social.

(…) De acordo com a teoria polivagal (incluindo o conceito de neurocepção), nossa faixa de comportamentos sociais é limitada pela fisiologia humana, que evoluiu a partir dos vertebrados mais primitivos. Quando estamos assustados, dependemos dos circuitos neurais que evoluíram para proporcionar comportamentos defensivos adaptativos para os vertebrados mais primitivos. Esses circuitos neurais provem mecanismos fisiológicos que organizam reflexivamente os comportamentos de mobilização ou imobilização antes de termos consciência do que está acontecendo. Por outro lado, quando a neurocepção nos diz que um ambiente é seguro e que as pessoas desse ambiente são confiáveis, nosso mecanismos de defesa são desativados. Podemos então nos comportar de maneira que incentive o envolvimento social e o afeto positivo.

O enfoque nos comportamentos com bases biológicas comuns a todos os seres humanos permite que profissionais imaginem novos paradigmas de intervenções para ajudar as crianças cujo comportamento social e afetivo esteja comprometido. Podemos alterar o ambiente de cuidados de modo que ele pareça – e seja – mais seguro para as crianças e tenha menos probabilidades de provocar respostas de mobilização ou imobilização. Também podemos intervir diretamente com as crianças, exercitando a regulação neural das estruturas do tronco cerebral, estimulando a regulação neural do sistema de envolvimento social e incentivando o comportamento social positivo. 

Stephen Porges – Teoria Polivagal: Fundamentos Neurofisiológicos das Emoções, Apego, Comunicação e Auto-regulação, Senses, 2012.   

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