As telas são um entretenimento prático e barato?

khalaó | Blogue

Muita gente esses dias está comentando sobre o artigo com a entrevista do neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, que saiu na BBC [‘Geração digital’: por que, pela 1ª vez, filhos têm QI inferior ao dos pais], falando sobre o prejuízo do uso excessivo de telas na primeira infância para a inteligência das crianças. É muito complicado num momento tão delicado como este da pandemia, em que as famílias estão sem muitos apoios, sem escola, sem espaço, sem familiares para ajudar, termos ainda que pensar nisso. Mas, vamos lá. Quero tentar ajudar com o que eu venho aprendendo com as teorias do apego e polivagal.

As telas são um recurso tão usado por quê? Porque parecem práticas e baratas. Se você tem um dispositivo qualquer, seja um celular, um tablet, um computador ou uma televisão e tem energia elétrica para fazê-los funcionar, você já tem um zilhão de conteúdos que você acessa em questão de minutos ou segundos, sem ter que colocar mais nenhum real. Isso dá a impressão de uma praticidade e de uma facilidade para lidar com as crianças, pra gente também. Ligou, sossegou, ligou, acessou… não é assim? 

Então, eu vim aqui para fazer um alerta em relação a isso, que tem a ver com o artigo da BBC, porque este pensamento de que é prático e barato é uma armadilha.

Se por um lado parece tão prática e barata a tela porque é ligar e pronto, por outro, vamos colocar na conta que uma criança que passar, digamos, 4 horas por dia na frente da tela provavelmente terá:

  • mais dificuldade de perceber o próprio corpo e os sinais do próprio corpo, então, terá mais dificuldade de adquirir autonomia para comer, tomar banho, se movimentar, usar o banheiro como os adultos, perceber quando está com sono ou qualquer outra sensação física
  • mais dificuldade para expressar seus sentimentos e necessidades, como por exemplo, que está triste porque queria algo que não recebeu ou que quer brincar fora de casa
  • mais dificuldade para lidar com as frustrações e mais tendência a comportamentos ansiosos como roer unha e comer doces. Claro, nas telas tudo é muito rápido e estimulante. Não há alternância de situações que favoreçam a aprendizagem do manejo dos limites. Mesmo que o conteúdo que ela esteja assistindo tenha uma proposta educativa, serão os cuidadores de referência trabalhando a partir desse conteúdo que poderão modular isso na criança.
  • mais dificuldade de lidar com os medos e com a agressividade, uma vez que na tela não está se relacionando com ninguém de carne e osso portanto não interage de fato e não elabora estratégias para lidar com os próprios estados internos

Agora vamos imaginar que essa criança se chama João e tem 4, 6 ou 9 anos, que passa essas 4 horas por dia, na metade desse tempo ele está assistindo conteúdos interessantes, que agregam valores condizentes com a família dele, que tem uma qualidade de roteiro, de imagens, não são muito acelerados e tem personagens que trazem boas referências. 

Na outra metade, ele está vendo qualquer coisa que seja sugerida pelos próprios aplicativos, sem critério, sendo levado pelo que seduz mais facilmente… Ou então ele brinca com joguinhos eletrônicos que não tem nenhuma história, são sequências repetitivas… Bom, o João está correndo o risco de todo aquele conteúdo legal que ele assistiu naquelas 2 horas não ser integrado ao seu desenvolvimento, uma vez que o conteúdo prejudicial formatou o cérebro dele de uma tal forma que ele pode sequer aproveitar o que as telas podem lhe oferecer de bom.

Aí é que está. O que os estudos de neurociência vão apontando é que o estímulo das telas têm esse poder, infelizmente. Se expomos a criança constantemente a um tipo de estímulo que não vai ao encontro das necessidades de desenvolvimento dela, ela vai acumulando lacunas maturativas que custam muito a recuperar. Custam tudo, tempo, dinheiro, energia…

O que a teoria polivagal vai dizer é justamente isso. O desenvolvimento vai se colocando em marcha a partir das experiências da criança, experiências concretas, de interação, de comunicação, de brincar, de sentir e de fazer. Se a criança não conversa na quase totalidade do tempo do seu dia, se ela não se movimenta, se ela não participa do cotidiano da casa ou da família, ela não vai se apropriar disso. Não basta ter falado uma vez sobre um sentimento para aprender a fazer isso e ter condições de fazer isso sempre. A criança precisa ter muitas e muitas oportunidades para se apropriar dessa como uma estratégia de vinculação em seus relacionamentos.

“Ah, mas meu filho faz tudo isso, brinca, fala pelos cotovelos, se movimenta e também assiste desenhos.” Sim, aí vamos entrar num outro ponto que é como selecionar conteúdos e como calcular o tempo na frente da tela.

Uma vez uma paciente relatou que o filho estava usando palavras agressivas, chamando-a “sua imbecil!”, um termo que ninguém costumava usar em casa. Fomos investigando e percebemos o quê? Era no desenho que um personagem chamava o outro desta forma. Então, vamos olhar seriamente para isso. O que os personagens dizem um para o outro? O que eles fazem? Eles se agridem ou se ajudam? Estamos de acordo com o padrão de relacionamento que eles estabelecem entre si? Aí temos um bom crivo. Outro dia li um gibi que veio parar na minha casa por que foi entregue junto com a pizza e quase caí para trás. Não tinha me dado conta de como a linguagem era violenta!

Voltando ao João, ele comenta o que está assistindo? Ele se movimenta enquanto vê algo no vídeo? Ele traz as histórias para a comunicação com a família e recria os enredos, dá outros encaminhamentos para o desfecho das histórias…? Se isso tudo acontece, são pontos a favor do conteúdo e da relação do João com esse estímulo audiovisual.

Sobre o tempo de permanência, aqui vou compartilhar uma reflexão pessoal pois o que temos de recomendações atualmente definem em 1 hora o tempo recomendável para crianças de 2 até 6 anos.

Como o sistema nervoso de cada indivíduo é único e particular, acho que cabe a observação. A criança parece muito viciada? Num dia em que algo diferente aconteceu, por exemplo, recebeu uma visita de alguém que gosta muito… mesmo assim a criança pediu a tela, lembrou da tela, não se interessou pela visita…? Aí talvez ela esteja exposta tempo demais. Porque ela não está transitando entre um modo e o outro de se desenvolver mentalmente. Se a criança prefere a tela a um encontro face-a-face aí provavelmente temos um sinal de tempo excessivo. Claro que o estímulo da tela em si é muito viciante e que a preferência em relação a outros estímulos cotidianos vai acontecer. Por isso, a ideia é observar se a criança está mantendo essa preferência também num dia em que tem a oportunidade de vivenciar algo diferente, novo. Um alerta para percebermos o condicionamento vencendo a curiosidade.

Para terminar, fica a reflexão. Quando a tela está suplantando a curiosidade da criança, impedindo-a de manifestar interesse pelo mundo, então é sinal de que estamos vendendo nosso ouro – nossos diamantes – a preço de banana.

Juliana Breschigliari, psicoterapeuta e orientadora de pais, facilitadora do Círculo Maternar – Encontros online para mulheres e mães da primeira infância.

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