É com grande prazer que compartilho aqui o capítulo de Miriam Rasse, psicóloga em espaços de multi-acolhimento infantil, diretora da Associação Pikler Lóczy – França, sobre o processo de socialização da criança. O texto intitulado “O processo de socialização: Olhar sobre a construção das relações entre crianças no caminho da integração das regras e suas dificuldades”, traduzido livremente pela querida Carmen Orofino, foi subdividido em três partes, publicadas separadamente aqui no blog:
1ª parte – O RECONHECIMENTO DO OUTRO COMO UMA PESSOA TANTO SEMELHANTE COMO DIFERENTE DE SI
2ª parte – O ADULTO MEDIADOR DAS RELAÇÕES ENTRE AS CRIANÇAS
3ª parte – O CAMINHO DA INTEGRAÇÃO DAS REGRAS PARA UMA CRIANÇA PEQUENA
O processo de socialização
Olhar sobre a construção das relações entre crianças no caminho da integração das regras e suas dificuldades.
O processo de socialização da criança se estrutura em torno de duas áreas complementares do desenvolvimento:
– o reconhecimento do outro como pessoa tanto semelhante como diferente de si.
– a integração das regras sociais, possibilitando a vida em grupo.
Este é um caminho complexo que, como para todas as outras aquisições, necessita de tempo (o tempo da descoberta, da experimentação e em seguida da progressiva integração) considerando-se os processos de amadurecimento e desafiando gradualmente a criança em novas potencialidades que, embora contidas na base genética de cada indivíduo, não podem ser mobilizadas de imediato. Embora possua as condições necessárias para se transformar em um ser social, a criança pequena necessita não somente de ser acompanhada neste desenvolvimento, mas também de ser guiada nas relações sociais pelos adultos que estão em seu entorno, conforme as concepções éticas vigentes. Isto requer, dos educadores que somos – pais e profissionais-, que se tenha clareza de que tipo de relação desejamos ajudar a construir, tanto entre os indivíduos como no grupo social.
O RECONHECIMENTO DO OUTRO COMO UMA PESSOA TANTO SEMELHANTE COMO DIFERENTE DE SI
O reconhecimento do “outro” passa inicialmente pelo conhecimento de si e faz parte do processo de diferenciação da criança. De fato, o bebê ao nascer não conhece a si mesmo. Ele não conhece seu corpo: ainda não sabe que seu pé é seu pé e sua mão sua mão… Ele ainda não conhece suas necessidades: experimenta tensões internas quando tem fome, frio ou sono, mas ainda não sabe qual é a natureza destas necessidades nem como satisfazê-las. O bebê ainda não sabe quem ele é, quais são seus gostos, seus interesses… Ele é movido por impulsos de sobrevivência que se expressam através de manifestações corporais apoiadas em seus reflexos: ele vira a sua cabeça em direção à fonte de alimentação e mama quando recebe uma alimentação líquida, grita e chora para reclamar a satisfação de suas necessidades vitais, tanto físicas como emocionais.
Sua agitação é um meio de descarga motora de suas tensões, de seus estados de irritação ou excitação; sua tranquilidade é o sinal de seu apaziguamento, de uma adequada satisfação de suas necessidades e de uma contenção de suas emoções.
A criança pequena é um ser dependente: ela tem absoluta necessidade dos adultos de seu entorno para se manter viva e precisa encontrar um adulto em especial que esteja muito atento àquilo que ela expressa e bastante engajado emocionalmente para que possa procurar dar sentido às suas manifestações corporais, respondendo a esta criança de forma coerente. Pelas suas respostas “adequadas” o adulto vai ajudar a criança a se conhecer, saber do que ela necessita e o que quer e assim organizar seu mundo interno (identificar melhor suas necessidades, aprender a expressá-las de forma diferenciada, descobrir o que pode lhe satisfazer…). Para este adulto que cuida da criança, isto tudo representa um trabalho psíquico intenso para, como diz Martine Lamour, às vezes “pensar bebê” (empatia para “se colocar no lugar do bebê” e compartilhar seus afetos- o “acordo afetivo” descrito por D. Stern) e em outras vezes “pensar o bebê” (ajustar os cuidados com a criança àquilo que ela expressa). Isto necessita disponibilidade, receptividade àquilo que vem do bebê e uma mobilização de seus conhecimentos e suas experiências, para procurar responder às suas necessidades, adequando elas as propostas de cuidados.
Nos seus primeiros meses de vida, o bebê está como que fundido com quem toma conta dele, em seu ambiente: ele não sabe ainda que na sua frente há um adulto que assegura a satisfação das suas necessidades. É como se este adulto e o seu ambiente (os barulhos, as cores, os cheiros…) fizessem parte dele. Ele vive um “período de ilusão” (Winnicott) no qual pensa que é ele mesmo quem cria a satisfação de suas necessidades. Pouco a pouco o bebê vai descobrir que existe um outro que está lá, o que vai lhe permitir também acessar a sua individuação: “se você e eu não somos um todo, é porque existe um você e um eu”! A criança vai, portanto, neste período do desenvolvimento, ter medo de perder o outro de quem ela precisa tanto, já que não faz ”parte” dela (período de angústia do oitavo mês, angústia e reação à separação); e se concentrar em descobrir, construir e afirmar a existência do seu “eu”: ela é movida por uma força interna, uma força de desenvolvimento que lhe empurra a afirmar sua existência e a reconhecê-la. Este é o sentido do período dito “de oposição”, mas que se pode acima de tudo considerar com o período de afirmação de si, da busca pelo reconhecimento de sua individualidade nascente. É este processo de individuação que ajuda a criança se reconhecer como um sujeito inteiro, aproximadamente por volta de dois anos e meio – três anos, quando ela se nomeia na primeira pessoa como um “eu” singular.
É experimentando suas vontades e suas escolhas que a criança se diferencia do outro: “Você e eu, nós somos diferentes.” As crianças pequenas recebidas em um espaço coletivo vivem, portanto uma situação paradoxal: elas vivem em grupo, espera-se delas um comportamento “social” que leve em conta seus companheiros, em um período de seu desenvolvimento em que elas ainda não estão prontas para isso!
Acompanhar o desenvolvimento da socialização é antes e acima de tudo apoiar a criança na construção de sua individuação: aprender a conhecer a si mesmo, saber quem ela é, o que ela quer e deseja (“saber” o que se quer não significa forçosamente “ter” o que se quer ou deseja!). Este é o sentido do acompanhamento do processo de socialização da criança: como realizar o que se quer levando em conta o outro, os outros e o contexto social?
Acompanhar a criança no conhecimento de si.
Sabemos que a criança pequena aprende a se conhecer através de sua própria atividade, descobrindo suas potencialidades e construindo suas capacidades. Por isso é importante dar-lhe o tempo e o espaço para explorar, experimentar, repetir… no seu ritmo. Ela não aprende somente a conhecer suas capacidades e a utilizá-las; ela descobre também quais são seus interesses: ela escolhe os objetos entre os que são colocados à sua disposição e os utiliza de uma maneira pessoal. Ela aprende a perceber o que lhe interessa pessoalmente, a escolher e decidir sobre o que lhe diz respeito. É por isso que é importante que as crianças possam encontrar materiais à sua disposição, reencontrar os objetos conhecidos e utilizá-los sem que se mostre a elas como fazer!
Também nos seus encontros com o adulto a criança aprende a se conhecer e a conhecer seu corpo, nos momentos em que ele é tocado e nomeado por ele. Além disso, ao ser cuidada por este adulto atento ao que ela expressa e manifesta, a criança vai aprender a conhecer seus gostos, seus ritmos… e a escolher e decidir: Será que eu ainda estou com fome? Eu gosto deste purê? Será que eu prefiro agora tomar minha mamadeira? Acolhida e levada em conta em suas expressões individuais, segura em sua relação com o adulto, a criança toma consciência de quem ela é, e pode se afirmar com vigor: afirmando sua vontade, a criança se diferencia da vontade do outro e constrói seu “ser eu”.
É por isso que é extremamente importante respeitar o que a criança quer comer ou não, apesar do nosso desejo de que ela termine seu prato de comida ou que ela não receba sua sobremesa se não comeu seus legumes (dentro de um projeto “educativo” compreensível, que prioriza uma alimentação variada e equilibrada). Importante também a preocupação de que ela não aceite os alimentos “mecanicamente”, mas sim expressando seus gostos e suas escolhas. Como dizia Emmi Pikler, em suas preconizações pedagógicas: “nenhuma colher a mais além daquela que lhe dá prazer” e “cada colherada deve conter uma indagação” (esperar que a criança abra a boca demonstrando que ela aceita essa nova colher que nós estamos lhe oferecendo). A criança deve poder escolher e decidir o que entra ou não na sua boca, dentro do contexto dado pelo adulto (é o adulto que sabe o que deve ser oferecido à criança tanto no conteúdo – introdução progressiva de novos alimentos, de acordo com aspectos nutricionais- quanto na forma: triturados, moídos, em pedaços… – em função das possibilidades de mastigação da criança).
A criança vive então a experiência de poder ser escutada e levada em conta em seus gostos e suas escolhas pessoais. É uma experiência essencial para ela perceber que se ela diz “não” (eu não quero mais, eu não tenho mais fome, eu não gosto deste alimento, eu prefiro comer a fruta…) ela poderá ser escutada pelo adulto de quem depende para se alimentar sem que ele insista (“agora mais uma colher para terminar seu iogurte” ou “para me deixar contente” ou ”porque você comeu pouco”…) ou distraia sua atenção para que ela coma sem perceber (distraí-lo ou fazer da refeição uma brincadeira, como “fazer avião com a colher”): isto é respeitar a criança!
É por isso que é importante que a criança possa manifestar suas necessidades e reagir ao que lhe é proposto também durante o tempo dos cuidados com o seu corpo (a troca, a higiene, o vestir): o que lhe é confortável, agradável ou não; como ela gostaria de participar destas atividades, contribuindo e expressando suas emoções. A criança bem pequena “fala” com o seu corpo, com seus gestos, seus movimentos, seu tônus: dar-lhe a possibilidade de ser ativa sobre o trocador, de se mover e não ficar impedida nos seus movimentos é uma maneira de “falar” a respeito daquilo que fazemos com ela: impedi-la de se mover, é impedi-la de falar!
A escuta do que esta criança expressa é levada em conta, sempre dentro do contexto proposto e mantido pelo adulto que a acompanha neste processo de diferenciação que lhe permite acessar a consciência de si e a construção de um “verdadeiro ser”. É por isso que, em um espaço de acolhimento coletivo, torna-se indispensável a individualização nos cuidados com cada criança em sua singularidade, bem como a necessidade de uma organização institucional que possibilite estes momentos de encontro personalizados entre o profissional e a criança.
O desafio para as equipes é, portanto de fazer o individual dentro do coletivo, com uma vigilância constante em relação aos detalhes do cotidiano para resistir às forças da vida coletiva que muitas vezes levam, mesmo sem que se perceba, a uma coletivização no acolhimento e a uma uniformização das propostas feitas às crianças, sobretudo em um grupo de crianças da mesma idade…
É nestes encontros com o adulto que cuida dele que o bebê vai viver suas primeiras experiências de encontro com um “outro” e, portanto, o que ele absorve nesta relação vai construir, consequentemente, suas relações com os outros. As atitudes do adulto para com ele vão, de certa forma, iniciá-lo no encontro com seus pares. Assim, podemos ver uma criança estender a mão em direção ao brinquedo cobiçado que está com outra criança tal como pôde experimentar com um adulto que lhe pede que lhe entregue o tubo de creme pego sobre o trocador, sem o tirá-lo das mãos. Ou ainda, a vemos entregar um brinquedo a outra criança esperando poder trocá-lo por aquele por ela cobiçado, como o adulto pôde lhe oferecer um outro brinquedo quando ele estava em conflito com outra criança; ou pode se ver uma criança entregar o “bichinho de estimação” a uma outra que chora, como adulto lhe fez quando ela estava triste…
Muito cedo, a criança é capaz de solicitude e empatia… se ela pôde ter a experiência por ela mesma. É a partir desta experiência de ter podido ser escutada, considerada, levada em conta, respeitada na sua relação com adulto que a criança vai aprender como se comportar no seu encontro com os outros. A criança não aprende a prestar atenção nos outros porque nós lhe pedimos, mas porque ela experimentou isso por ela mesma.
Para que possa se abrir ao outro e ao mundo, a criança pequena deve poder estar suficientemente segura em suas relações com os adultos de seu entorno, saber que ela pode contar com eles sendo acolhida em suas necessidades fisiológicas, afetivas e emocionais, assegurada em seu lugar singular dentro do grupo e reconhecida em sua própria identidade. Fortalecidas por esta segurança, as crianças são então extremamente tolerantes, prontas para aceitar a diferença e a singularidade de cada um, inspirando-se na atitude do adulto de referência para se aproximar dos outros. Uma criança que está com dificuldades em suas relações com os outros, se expressando com frequência por comportamentos agressivos, é sem dúvida uma criança que não se sente suficientemente “segura” nesse lugar e pouco confortável no seu reconhecimento de si mesma.
É o adulto que vai “dar o tom” das relações e as crianças se identificam com suas atitudes em relação a uma ou outra: elas sabem que esta criança gosta de se isolar e que é melhor não entrar no “seu espaço”, de que maneira podemos brincar com essa criança com dificuldades motoras e que não pode se deslocar, que a força dos gritos de outra não é tão inquietante…
Construir relações sociais é também procurar conhecer suficientemente as pessoas que estão ao nosso lado, para saber como se comportar em relação a elas, ajustar nossas ações ao que elas são e ao que sabemos delas. É o que nós fazemos em nossas relações: não nos dirigimos da mesma maneira a cada uma das pessoas com quem convivemos: ajustamos nossos comportamentos e nossas palavras de acordo com a pessoa com a qual nos comunicamos…
É por isso que, para sustentar a construção das relações entre as crianças, algo tão complexo para elas, é necessário que elas possam viver em um grupo não muito numeroso e estável (para que elas possam suficientemente “conhecer” cada companheiro e adaptar sua forma de comunicação em função do que elas aprenderam de cada um).