Muitas são as leituras de criação com apego, abordagem pikler e disciplina positiva que me parecem sintônicas ao olhar fenomenológico, que cultivo na clínica em geral e no atendimento às mães, bebês e famílias puérperas.
Talvez o que me faça resgatar aqui a fenomenologia seja a sensação de que por mais que as idéias do que fazer, como conduzir os cuidados com um bebê ou uma criança ou os conflitos familiares possam ser bem orientados por essas abordagens, o fundamento mesmo, as questões mais essenciais da compreensão do existir humano me são dadas pelo olhar fenomenológico. E sem esse olhar para o fundamento, podemos facilmente nos perder de nossas buscas mais primordiais, apenas seguindo orientações práticas que perdem o sentido quando nos distraímos.
O olhar fenomenológico compreende o humano para além de aspectos que podem ser medidos ou calculados. O humano é sempre feixe de possibilidades que não se separa do mundo – homem e mundo co-pertencentes. E é temporal.
Nascimento – O bebê humano não nasce encerrado em si mesmo. Já está desde o início percebendo o mundo, que se manifesta a ele, ainda que ele não tenha uma atenção dirigida aos objetos.
No início da vida, o mundo do bebê é ainda um tanto incipiente. Sua possibilidade de apropriação de si mesmo vai se expandindo conforme se relaciona com o mundo e com as pessoas. Daí a importância do modo como é cuidado pelas pessoas. Assim, nas primeiras semanas de sua acontecência, o bebê está como que espalhado, faltando-lhe um sentido de si mesmo, de espaço e de tempo. No início, a única temporalidade da qual o bebê dispõe é a sensação difusa de poder continuar a ser (Dias, 2003).
O bebê então em sua dispersão originária precisa continuar sendo. Ele é regido pela temporalidade do instante, do imediato, o que não significa estar no presente pois não existe ainda tampouco a abertura de compreensão de passado e futuro. Nesse período, o bebê precisa de um cuidador que permita que ele seja o que precisa ser a cada instante.
Me lembro da palestra de Myrtha Chockler no Seminario Pikler sobre a infância de 0 a 3 anos no ano passado falando sobre a importância da observação, no relacionamento do cuidador (mãe, pai ou outros) com o bebê. No rosto do bebê e nos movimentos corporais podemos ver suas expressões de emoção, de interesse, de curiosidade ou de desconforto ou desagrado com o que vai experimentando. Algo muito precioso de ser testemunhado e reconhecido pelo adulto cuidador todo o tempo (e não só esporadicamente), que serve de confirmação para este ser humano recém-chegado a um mundo em que para ele tudo é novidade. O cuidador “vivo” fenomenológico é o cuidador que observa, reconhece e atende as necessidades do bebê na medida exata. Acho que Carlos Gonzales concordaria com isso!
O bebê vai reconhecendo suas necessidades como reais e como suas na medida em que o cuidador o atende repetidamente, em seu tempo próprio, ajudando-o a construir familiaridade com o mundo.
É aos poucos que o “tempo do instante” se alarga para o “tempo do já” na criança, em que as repetições das experiências vão sendo percebidas e ele pode enfim se presentificar e perceber o que está por vir, começar a antecipar os acontecimentos que vão se tornando habituais. Enquanto o bebê sofre pela necessidade não atendida no imediato, a criança é capaz de esperar um pouco mais, confiando no futuro e com mais segurança.
Resumidamente, um ambiente estável, constante e simples, que não traga novidades o tempo todo (o contrário da superestimulação); o atendimento às necessidades do bebê, por inúmeras vezes, no tempo dele (o contrário do disciplinamento); e um cuidador “vivo” (um mesmo ou poucos cuidadores, evitando grandes alternâncias de pessoas).
Me vêm à cabeça também os escritos de Laura Guttman. No plano da vida cotidiana, no mundo em que vivemos, em que o cuidado da infância na sua peculiaridade não é ainda entendido como algo tão delicado e importante, enfrentamos como cuidadores inúmeras dificuldades para dar atenção exclusiva ao bebê como ele necessita. Frequentemente atribulados com inúmeras atividades a serem realizadas simultaneamente (entre os cuidados da casa, da profissão ou simplesmente ligados às telas), sentindo-nos mal por não darmos conta de nada como gostaríamos e, o mais preocupante, nos relacionando com o bebê sempre em espera. Nessa fase em que esperar é tão difícil, os bebês esperam muito, estão constantemente esperando… Por isso, destaco o modo como o bebê é cuidado e como o cuidador compreende a peculiaridade do bebê em seu modo próprio de ser-bebê já temporalizado no instante.
Não custa enfatizar, para mim, com apoio no pensamento do filósofo Martin Heidegger em que ser é tempo, o fundamental nesse olhar é a compreensão do ser do homem como um ser temporal, de uma temporalidade que vai se construindo e se alargando gradativamente com o desenrolar da vida e das experiências. Uma temporalidade que nasce muito trabalhosa para os cuidadores porque é demandante, solicita muito, mas que passa… amadurece… também se tinge de sentimentos e possibilidades mais amplas e complexas conforme a vida vai sendo costurada no tecido do tempo.
Para finalizar, cito Carlos Gonzáles no livro Creciendo juntos: de la infância a la adolescencia com cariño e respeto: “As crianças crescem, e nós crescemos com elas. A infância é fugaz. Que nossa obsessão em corrigir-la não nos impeça de desfrutá-la.” (tradução livre da autora)
*Para mais detalhes sobre o olhar fenomenológico sobre o ser-bebê ver o artigo “Acontecência Humana: Reflexões sobre o Modo de Ser-para-início”, de Marcelo Sodelli e Priscilla Andrea Glaser.