O desfralde sob a ótica da abordagem Pikler

Neste post, compartilho a tradução de um texto das pediatras Judit Falk e Maria Vincze, pesquisadoras da abordagem Pikler, sobre o tema do desfralde em bebês. Muito presentes nos atendimentos com mães, pais e casais com filhos pequenos, o processo de abandono da fralda (já procurando desde a nomeação deste processo reconhecer o protagonismo da criança nas mudanças pertinentes ao seus desenvolvimento), é uma das questões importantes e geradoras de ansiedades nos pequenos e também em seus cuidadores. Agradeço à querida Carmen Moraes, da Oficina de Movimento Lúdico, pela generosidade de ter traduzido e compartilhado esse texto.

A Aquisição do controle esfincteriano: sem punição nem recompensa?

Judit Falk e Maria Vincze

Pediatras

                                                                       Tradução: Carmen Moraes

Na maior parte do tempo, os conselhos dados aos pais para que seu filho adquira o controle esfincteriano, sugerem que o adulto, em dado momento, treine a criança a não fazer mais suas necessidades na fralda, mas no penico. Os que são adeptos dessa opinião divergem sobre o método e a idade ou ainda o nível de desenvolvimento em que ele deve começar essa aprendizagem. Mas, todos pensam que trata-se somente da introdução de um novo hábito no comportamento da criança, usar o penico ou a privada, e que a tarefa do adulto é de criar esse hábito.

Ora, a aquisição desse controle não consiste simplesmente na aprendizagem de um hábito ou apropriar-se de um novo conhecimento, mas é um passo importante no desenvolvimento mental e social da criança pequena. Pela primeira vez, ela toma a decisão de não dar livre curso à satisfação das suas necessidades e suporta o incômodo da tensão com o objetivo de assimilar uma norma adulta. Sua decisão parte do desejo de ser como os adultos, de se parecer com eles, de integrar suas normas e comportamento. É por isso que ela não tenta ceder de imediato às suas necessidades; ela abandona suas brincadeiras ou qualquer outra atividade e faz suas necessidades no lugar adequado.

Nessa lógica, a sucessão das etapas é a seguinte:

1. A criança reconhece sua necessidade como tal.

2. Ela se abstém de um alívio imediato.

3. Ela procura as condições e o lugar convenientes.

Na lógica da educação clássica do controle dos esfíncteres, a ordem da sucessão pode ser diferente:

1.O adulto propõe o penico independentemente da necessidade sentida pela criança.

2. Espera-se que a necessidade apareça.

3. O adulto exprime sua aprovação ou reprovação em função do resultado.

A exigência que a criança atende quando vai ao penico em horas determinadas pelo adulto e à época em que o adulto julga que ela está na idade de fazê-lo, priva-a de descobrir as possibilidades de seu corpo, de tomar consciência do controle voluntário que ela pode, num certo grau de sua maturidade, exercer sobre seus esfíncteres.

Os métodos habituais separam em duas fases distintas o processo de aquisição:

Na primeira fase, a fralda fica seca porque o adulto instaura um reflexo condicionado em uma idade muito precoce ou porque ele põe a criança frequentemente e por um longo tempo sentada no penico, em que ela não tem outra escolha a não ser fazer suas necessidades. Acontece também da criança, próxima da idade de maturidade, obedecer e aceitar o hábito de não fazer xixi ou cocô na fralda ou na calça. Mas, mesmo se a criança não se opõe a essas exigências além de sua maturidade, não é ela, mas o adulto quem controla seus esfíncteres.

Na segunda fase, a criança toma sozinha a decisão de assumir a responsabilidade do controle autônomo de seus esfíncteres. Entre as duas fases, podem se passar meses ou até anos. Muitas mães, orgulhosas de verem seus filhos largarem a fralda precocemente, acham natural lembrá-lo, mesmo na idade de 5, 6 anos, de ir ao banheiro, ou ao menos perguntar-lhe se ele não precisa ir.

A aprendizagem não libera a criança da dificuldade de decidir, e a mantém em um estado de dependência e de confusão no que diz respeito às funções corporais; pois, o que é biológico, torna-se relacional. Ela deve “fazer” ou “não fazer” para agradar ao adulto. O que ela poderia ter adquirido mais tarde por competência, sente como uma obrigação imposta do exterior. É assim que os conflitos vão aparecendo se a criança não quer fazer xixi ou cocô quando isso lhe é imposto, e é assim que, por acaso, ou para defender sua autonomia, ela acaba fazendo na calça.

Os diferentes problemas do controle esfincteriano não significam somente que a criança não controla ou controla mal seus músculos esfincterianos; eles são também sinais de problemas do desenvolvimento relacional ou social ligados às esferas mais íntimas de sua vida psíquica.

Assim, a partir das nossas experiências em Lóczy, esses conflitos entre o adulto e a criança a propósito da aquisição do controle dos esfíncteres podem ser evitados. Quando ela tem um bom relacionamento com o adulto, adquire esse controle sem que o adulto tenha que ensiná-la.

Realizamos no nosso instituto uma pesquisa com 226 crianças, para entender quando e como as crianças adquirem esse controle.

Os resultados resumidos em seis pontos

As crianças chegaram ao controle esfincteriano sem nenhuma aprendizagem ou condicionamento por parte do adulto, sem felicitações particulares nem expectativas expressas sob forma de reprovações ou de comparações, mas com uma atenção focada em suas manifestações verbais ou não verbais.

1 – As crianças em média, chegam a um verdadeiro controle esfincteriano à idade de 35 meses, mas o leque é bem amplo.

2 – Nenhuma das crianças desenvolveu de maneira segura o controle das fezes antes da urina.

3 – Essa diferença entre a nossa amostra e as crianças que são treinadas pode ser atribuída simplesmente ao fato de que o treinamento visa principalmente o controle do esfíncter anal.

4 – Não há diferença significativa entre os dois sexos quanto à idade da aquisição.

5 – Há variações importantes entre as crianças quanto às etapas do controle esfincteriano: idade em que ela sinaliza a micção ou a evacuação, idade da primeira vez do uso do penico, do primeiro xixi ou cocô no penico, ou do seu uso regular. Da mesma forma as interrupções podem ser mais ou menos longas, podendo levar desde alguns dias ou um ano inteiro.

6 – Enfim, na duração do processo há também grandes diferenças entre as crianças: na nossa amostra o processo durou em média 9,4 meses, resultado similar àquele de T. Brazelton (1962). Um fenômeno observado provou ser inútil para explicar as diferenças percebidas (nós o chamamos de “o choque do primeiro cocô”): constatamos que o primeiro cocô no penico não necessariamente é seguido de uma segunda vez ou que ela começará a usá-lo regularmente; a não ser depois de um intervalo mais ou menos longo.

Maturação biológica, maturação do eu: o caminho que leva a criança à aquisição do controle esfincteriano  

Esse processo da aquisição ocorre naturalmente, paralelamente ao desenvolvimento do sistema nervoso e à formação da personalidade, no 3o ano:

O centro do controle voluntário dos esfíncteres da bexiga e do reto se situa no lobo frontal, que atinge sua maturidade após outras partes do cérebro ( a partir de dois anos e meio).

Em todas as crianças de nossa amostra, sem nenhuma exceção, a aquisição do controle esfincteriano foi precedido pelo uso da primeira pessoa do singular e pelo uso do pronome  “eu”. São sinais de que o processo do despertar da consciência de si e a delimitação de seu “eu” já ocorreram na criança. (O desabrochar do “eu” da criança é facilitado se lhe damos espaço de liberdade, sempre lhe mostrando com precisão os limites cuja desobediência não é permitida).

Contrariamente à ideia formulada constantemente, as crianças que não foram educadas ou treinadas a fazer suas necessidades no penico, não passam a usá-lo “de um dia para o outro”: alcançar um certo nível de controle em qualquer domínio do desenvolvimento não acontece de um dia para outro! Esta aquisição é resultado de um processo de maturação e de auto aprendizagem que necessita de experimentação e do exercício de novas potencialidades. Mas, é também um processo de socialização que depende, de maneira considerável, de um lado, do desejo de crescer, de tornar-se adulto e de se identificar com o adulto amado; e de outro lado, em um certo sentido, de sua capacidade de renúncia. É preciso renunciar à existência do bebê que pode liberar o xixi e o cocô quando e onde ela quiser com um sentimento agradável de alívio.

Ela renuncia à fralda macia e quente e à proximidade íntima com o adulto durante a troca. Renuncia igualmente às fezes e à urina que ela produz e depois “põe para fora” e “faz desaparecer”, diante de seus olhos. Para realizar isso, ela precisa mobilizar uma enorme força de vontade e pode viver um conflito, não com o adulto, mas internamente; sentir medo quando o xixi e sobretudo o cocô saem no penico e medo ao vê-los desaparecer indo embora quando dão a descarga. Não podemos muito menos nos esquecer que o período da maturidade esfincteriana coincide mais ou menos com aquele em que começa a surgir o interesse pela sexualidade e as primeiras emoções sexuais. Numerosos exemplos apresentados na pesquisa mostram que nesse período, as crianças estão preocupadas com a estrutura e o funcionamento de seus corpos, com questões sobre a sexualidade, a diferença entre os meninos e as meninas, a diferença entre os órgãos genitais, o mistério do nascimento e do parto.

Conclusão

A pedagogia de Lóczy é baseada sobre a confiança na capacidade de desenvolvimento da criança, nesse “motor” inato que a impulsiona a crescer sem a intervenção direta do adulto. Com a condição de que ela seja beneficiada por uma relação afetiva estável, a criança se apropria das normas sociais apresentadas pela pessoa que ela ama. Estamos profundamente convencidas de que toda intervenção no ritmo individual do desenvolvimento de cada criança, todas as tentativas visando acelerar seu desenvolvimento através de estratégias sofisticadas, lhe prejudicam. Por outro lado, assegurando-lhe sempre um ambiente adequado, tornamos possível a ela a exploração de suas próprias capacidades e de seu entorno. O adulto não espera da criança nada que ela já não seja capaz, que ela não possa realizar. A criança não é confrontada com exigências que ela tenha que satisfazer, e por isso, não se expõe aos fracassos provocados pelas expectativas do adulto.

Não seria natural que nesse meio, esperar também com paciência que ela decida fazer suas necessidades como os grandes fazem?

Pensamos, da mesma forma, que as crianças criadas no meio de uma família “suficientemente boa” podem, elas também, sem nenhuma aprendizagem ou educação especial, acessar o controle esfincteriano, que não é simplesmente o resultado de uma maturidade neuromuscular e do aprendizado de um novo hábito mas uma função do “eu” da criança. A falta de intervenção do adulto no ritmo de aquisição do controle dos esfíncteres da criança, a possibilidade de ela se auto regular, a preserva, preserva seus pais, assim como sua relação, de maiores perturbações.  

(Passagem de uma pesquisa sobre a aquisição do controle esfincteriano no Instituto Pikler, disponível na Associação Pikler-Lóczy-França: www.pikler.fr)

One thought on “O desfralde sob a ótica da abordagem Pikler

  1. Eliana Aparecida Barbosa Figueiredo says:

    Adorei, muito certo pois com a minha filha foi dessa forma, e hoje adulta ela muito segura em suas ações

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