É com grande prazer que compartilho aqui o capítulo de Miriam Rasse, psicóloga em espaços de multi-acolhimento infantil, diretora da Associação Pikler Lóczy – França, sobre o processo de socialização da criança. O texto intitulado “O processo de socialização: Olhar sobre a construção das relações entre crianças no caminho da integração das regras e suas dificuldades”, traduzido livremente pela querida Carmen Orofino, foi subdividido em três partes, publicadas separadamente aqui no blog:
1ª parte – O RECONHECIMENTO DO OUTRO COMO UMA PESSOA TANTO SEMELHANTE COMO DIFERENTE DE SI
2ª parte – O ADULTO MEDIADOR DAS RELAÇÕES ENTRE AS CRIANÇAS
3ª parte – O CAMINHO DA INTEGRAÇÃO DAS REGRAS PARA UMA CRIANÇA PEQUENA
O ADULTO MEDIADOR DAS RELAÇÕES ENTRE AS CRIANÇAS
Muito cedo, as crianças se interessam por seus pares. Elas prestam atenção e se interessam pelos movimentos, pelos sons produzidos por outra criança, pela maneira como ela utiliza algum objeto. Elas são tão sensíveis às emoções expressadas por outros que algumas vezes estas podem ser “contagiosas”: os choros, uma excitação, por vezes compartilhados.
Num primeiro momento, a criança se interessa pela maneira como outra brinca com um determinado objeto e pode então tentar pegá-lo sem ter ainda completa consciência da existência deste “outro” que brinca com ele… Depois, pouco a pouco, ela começa a realizar que não pode pegar este objeto sem levar em conta a reação do outro (sobretudo quando este resiste afirmando sua vontade e suas escolhas) e vai progressivamente procurar interagir com ele.
As atividades de imitação das crianças entre elas são também um sinal de interesse por aquilo que o outro faz. É por isso que eles têm necessidade de encontrar uma quantidade suficiente de objetos parecidos no seu ambiente para imitarem-se uns aos outros, sem estar obrigados a pegar o brinquedo do outro para fazer como ele… Elas precisarão de sugestões do adulto para encontrar um brinquedo semelhante antes de pegar aquele do outro.
Olhar sobre o que podemos compreender dos conflitos entre as crianças
Os conflitos entre as crianças vão surgir… eles não precisam ser evitados! Certamente, os adultos cuidarão para que os conflitos não sejam tão importantes através de uma organização de espaço pensada com cuidado: objetos em número satisfatório, um espaço vasto o suficiente e dividido para que as crianças não se machuquem em suas respectivas atividades (com as delimitações pelas divisórias: abertas permitindo uma melhor utilização de todo espaço ou fechadas para proteger a atividade de cada um de acordo com seu nível de desenvolvimento: para as crianças que ainda não se deslocam, para aquelas já que se deslocam muito…). Mas o conflito tem um valor estruturante. Ele é a expressão de vontades ou de desejos diferentes, visões opostas entre os protagonistas.
Expressam-se então vontades de uma parte e de outra, o que em si é positivo: cada um manifesta sua vontade de possuir o brinquedo, que está no centro do conflito; eles sabem o que querem e sabem expressá-lo… ao contrário de certas crianças que renunciam muito facilmente à posse de um objeto (e que terão possivelmente necessidade da sustentação de um adulto para afirmar sua vontade – sua existência, sua identidade – e fazê-la ser reconhecida. Por uma intervenção como: “você pode lhe dizer não se você não terminou sua brincadeira com este objeto” e/ou ao outro: “ele não terminou ainda sua brincadeira com este objeto, você não pode pegá-lo”…).
O conflito permite tomar consciência do outro, como alguém diferente de si: “Seu desejo e o meu são diferentes”. Que descoberta para a criança pequena! Descoberta que vai ajudá-la a caminhar neste processo de diferenciação entre ela e o outro. A criança que toma o brinquedo da mão do outro é levada pelo seu desejo de possuir este objeto, muitas vezes também interessado pelo que o outro faz (interesse pelo objeto colocado em movimento pelo outro, observa a ação do outro que movimenta o objeto – o que seria já uma atitude pró-social…), mas, neste período onde a criança ainda não tem suficientemente construída sua diferenciação entre ela e o outro, ainda não é capaz de imaginar se ela deseja um objeto, que o outro não tenha, ao mesmo tempo, o desejo de lhe dar!
A intervenção do adulto, nessa situação, se os protagonistas não chegam a encontrar um resultado favorável a cada um, deve ajudar nesta diferenciação, colocando-lhes os dois desejos: “Você tem muita vontade de brincar com este brinquedo… mas Romeo não tem vontade de lhe dar porque ainda está brincando com ele”. E a caminhar em direção a uma solução possível: “Você pode encontrar um brinquedo parecido” ou “Você poderá tê-lo quando Romeo tiver terminado de brincar.” Não faz sentido pedir às crianças que compartilhem a brincadeira (elas ainda não tem esta capacidade: é complicado para duas crianças pequenas “brincar junto”) ou cedam seus brinquedos sob o pretexto de que “já faz um tempo que você está brincando com este objeto” (fazendo com que a criança que está com o objeto se sinta desprotegida em sua atividade…).
O adulto é mediador nas relações entre as crianças: ele tenta ajudá-las a se compreenderem e a se comunicarem e procura encontrar soluções aceitáveis para cada um deles. Ele não é nem um árbitro: (“era ele que estava com o brinquedo”: não é sempre que pode saber quem o tinha “primeiro”. Pode ser que este que se viu pegando o jogo do outro tenha justamente o deixado por um instante, para procurar outro brinquedo e completar sua brincadeira; pode ser que ele tenha vontade de retomar o brinquedo que ele tinha há pouco para continuar ou recomeçar uma atividade que estava em curso, numa continuidade de experimentações que ele explora nesse momento), nem um juiz: (“isto não está bem, você não deve pegar o brinquedo dele”) nem um policial: que lembra a regra: (“é proibido pegar o brinquedo do outro”)… Mas um aliado das crianças, que procura compreender o que pode motivar cada um deles, mobilizar suas capacidades de empatia: procurar se colocar “no lugar da criança” para compreender porque ela age desta maneira, qual poderia ser o significado de seu comportamento nesse momento.
O papel do adulto não é de encerrar o conflito… Seu papel é de partilhar emocionalmente o que é vivido entre eles (“eu vejo/ eu entendo que está difícil para vocês dois. O que está acontecendo?” “Vocês estão com vontade de brincar juntos, mas está difícil”…) e de ajudá-los a encontrar uma solução que possa ser conveniente a cada um, através de proposições e sugestões (“há outros brinquedos parecidos”); ajudando-os a conseguir proteger sua brincadeira (“você pode lhe dizer não se você não está de acordo”, “se você não quer ser incomodado na sua atividade, você pode se afastar um pouco”) de sustentar/ fazer compreender a expressão de cada um (“você está vendo, ele está lhe dizendo que ele não está com vontade, que não quer”). O adulto procura ajudar a encontrar uma solução, ele não tem A solução! Ele é um parceiro em um tipo de “co-construção” onde as crianças podem aprender que é possível encontrar uma resolução ao conflito… e que elas possuem capacidades para isso. A criança deve poder aprender com a intervenção do adulto para, quando ela se encontrar em uma situação parecida, saber qual caminho poderá seguir… por ela mesma. É acompanhá-la no caminho de sua autonomia; ao invés de criar uma dependência (“se eu estou em dificuldade, o adulto encontrará uma solução”), a criança pode descobrir que ela não é impotente, que ela tem recursos… podendo sempre contar com um adulto para acompanhá-la (e não fazer no seu lugar) – porque ter autonomia não é “estar sozinho”!
Olhar sobre os comportamentos agressivos
Os comportamentos agressivos são frequentemente reações de defesa, de “sobrevivência”, para se proteger, quando nos sentimos atacados, ameaçados ou impotentes para nos fazermos entender ou nos sentirmos compreendidos. Por isso, em um primeiro momento, eles devem ser considerados como positivos: a criança não está submissa ou passiva perante aquilo que ela sente como um incômodo para ela.
As crianças pequenas frequentemente recorrem a este tipo de comportamento por um certo período de seu desenvolvimento, onde elas ainda têm poucos recursos de expressão: a criança fala com seu corpo, com seus gestos, com seus comportamentos… É também uma manifestação instintiva, não controlada, que “explode” e que a criança não sabe ainda conter (seu “sistema de controle” de seus comportamentos ainda não está maduro: ela sabe que não deve fazer, mas não consegue se impedir, é “mais forte do que ela”). Muitas vezes a criança fica realmente “fora de dela”, muito aborrecida, tão invadida por uma emoção.
Certamente é o papel do adulto ajudá-la a compreender que esta maneira de se expressar não é “socialmente aceitável”… mas isto não é suficiente: o que vai fazer a criança com esta emoção que ela sente e que a invade se ela somente for reprimida? A criança pequena tem necessidade da contenção do adulto em um período de seu desenvolvimento quando não ainda não tem total capacidade – maturativa – de se conter ela mesma: ela tem necessidade de ser apaziguada, reconfortada, perante a violência de sua emoção, de seu impulso. Ela necessita de um adulto para ajudá-la a aprender a transformar esta reação em um comportamento mais ”civilizado”, humanizado. Para isto, o adulto deve poder estar conectado à emoção da criança, procurando compreender o que pôde ter suscitado esta reação tão violenta: não aceitar, firmemente, sem ambiguidade, seu comportamento indesejável da criança, mas sem rejeitar sua emoção. Acolher esta emoção (“você está muito bravo, você não está de acordo, você está triste…), procurar compreender sua origem (“ porque ele pegou o seu brinquedo, porque ele desmanchou sua construção, porque você está impaciente que chegue o momento da a sua refeição, porque sua mãe acabou de partir, porque eu lhe pedi para não subir nessa prateleira…” E, algumas vezes não se sabe o que provocou esta manifestação: “eu não sei por que, mas eu vejo que você não está contente”) e ajudar a criança a poder expressar de outra forma, de um modo ”socialmente aceitável” sem machucar o outro nem a si mesmo: (“como você pode lhe dizer de outra forma? Você pode lhe dizer não, você pode mudar de lugar se você está incomodado”; você pode bater em uma bola ou sobre um uma almofada”) para que ela possa se liberar de sua raiva, de sua cólera, de uma frustração intensa… Ainda uma vez, o adulto deve poder ser um apoio para a criança, um tipo de “eu auxiliar” deste eu em construção.
A criança “agressora” deve poder ser contida, apaziguada, para poder retomar certo controle sobre ela mesma, sobre seus comportamentos. Se seu comportamento não é aceito, ela deve ter certeza absoluta de que ela como pessoa continua a sê-lo, que a relação com o adulto que é importante para ela não está sendo colocada em risco. E aquela que é ”agredida” deve poder ser consolada, mas não só isto: é importante também pensar em como ajudá-la a se proteger, perceber e evitar a reação violenta do outro que é possivelmente uma consequência de sua ação. Pode ser que ela tenha vindo incomodá-lo em sua atividade, chegando muito perto…
Às vezes, os comportamentos agressivos de uma criança não são mais que uma reação a uma frustração ou a uma emoção, mas são utilizados de forma “instrumental”: a criança utiliza esta forma de comportamento como uma maneira de obter o que ela deseja: (um objeto ou a atenção do adulto…) É importante observar este modo de funcionamento para ajudar a criança a “se livrar”, transformar esta atitude, para que não use a violência para atingir suas finalidades. Neste caso também a criança precisa de ajuda: como ajudá-la a se fazer compreender sem precisar utilizar este modo de comportamento? Frequentemente os profissionais dizem: “ele está procurando chamar nossa atenção”: o que fazer para compreender esta necessidade violentamente expressada? Como é possível lhe assegurar esta atenção suplementar que ela necessita? Por vezes, a dificuldade da criança é mais profunda: ela não encontra seu lugar no grupo, ela não encontra a atenção ou da compreensão que ela precisa, a separação de sua família é difícil para ela, ela está em um período de desenvolvimento que a deixa inquieta, insegura, a vida em grupo é difícil e ela gostaria de poder se isolar, ficar tranquila, etc. Seus frequentes comportamentos agressivos são sinal de seu mal estar, um meio de exteriorizar seu desconforto. Ela seguramente tem necessidade de encontrar um pouco de calma em face a esta efervescência interior “que lhe transborda”, um pouco de tranquilidade para poder se apaziguar se proteger deste ambiente que a angustia (é difícil de viver em grupo o dia todo, viver sem a presença atenta e calorosa dos pais que não estão lá. De vez em quando ou em certos momentos, algumas das crianças “chegam ao seu limite”…). E não se trata de “punir” esta criança (mesmo se mais uma vez nós a façamos saber que não se pode aceitar seu comportamento), mas dar-lhe a possibilidade de se recarregar, de reencontrar suas capacidades de estar em contato com ela mesma (e não “fora de si”)… É por isso que se pode propor a ela um espaço onde ela possa momentaneamente “se isolar”, estar protegida do grupo, se reencontrar com ela mesma: um espaço especialmente organizado para ela, com os objetos que ela aprecia, talvez sua cama, que lhe pertence pessoalmente, onde ela não esteja muito longe do olhar do adulto: um espaço de contenção que vai prolongar aquele que o adulto que é importante para ela já lhe forneceu…
Para os adultos, não é simples acolher estas múltiplas emoções, intensas e por vezes violentas das crianças de seu entorno. Para ajudar uma criança com estas emoções que lhe “transbordam”, com comportamentos que ela não controla, é necessário poder ser receptivo a estas emoções, recebê-las em si, procurando preservar-se para não ficar muito tocado. Algumas vezes nos sentimos sem munição, impotentes diante da força e do poder destas expressões, que em algumas vezes levam a reações em espelho da criança: reações não pensadas, não faladas, as irrupções não controladas de irritação, de aborrecimento, de violência pelas quais somos invadidos. É por isso que não se pode estar sozinho com tudo isto: uma equipe, momentos e espaços onde se pode falar “elaborar” junto aos outros, ser sustentado pelos membros da equipe que estão um pouco mais à distância (e equipe de gestores, as educadoras, a psicóloga…). E que possa ajudar a tomar um recuo, procurar dar sentido a tudo que se passa, se vive, se experimenta, para pensar junto… tudo isto é necessário e indispensável!
Para desenvolver sua atenção, sua receptividade ao que cada criança expressa, é indispensável igualmente que os profissionais estejam em condições de trabalho que lhe permitam: a segurança da sua posição e seu papel no estabelecimento para a estabilidade, a previsibilidade, a organização do espaço institucional; sendo reconhecidos e sustentados em suas competências; com o material confortável, acessível e disponível quando se necessita.