Sequelas e efeitos negativos da aplicação de métodos de adestramento do sono em bebês ou crianças

Já há algum tempo venho estudando a temática do sono infantil a partir do Dormir Sin Lágrimas, um livro espanhol escrito pela psicóloga Rosa Jové, que traz informações preciosas sobre a fisiologia do sono dos bebês e crianças e como os pais podem lidar com esse aspecto do desenvolvimento de seus filhos.

Neste post, trago a tradução de um trecho desse livro, Secuelas y efectos negativos, situado no capítulo 4 “Lo que no se debe hacer”.

Espero com isso levar aos pais e colegas informações que não estão muito disseminadas ainda aqui no Brasil, muito embora as dificuldades das famílias nesse âmbito estejam grandes ainda. E abrir o diálogo e a reflexão para um cuidado cada vez mais fundamentado com os pequenos.

O psicohistoriador Lloyd de Mause[1] explica que os traumas provocados pelo desamparo podem danificar severamente o hipocampo, mantando neurônios (causando lesões). Este dano é causado pela liberação de uma cascata de cortisol, adrenalina e outros hormônios do estresse secretadas durante o episódio traumático, que não somente danificam as células cerebrais como também a memória e põe em marcha uma desregulação duradoura da bioquímica cerebral.

Esta desregulação provoca uma série de alterações. As sequelas mais importantes e que se podem observar nas crianças são: ansiedade, depressão, desamparo aprendido, síndrome do estresse pós-traumático, transtornos do apego e alterações do comportamento como hiperatividade[2].

Não pretendemos fazer um detalhamento exaustivo dessas patologias nem de seus mecanismos de aquisição. Se querem ampliar este item sem recorrer a livros excessivamente especializados, podem ver a magnífica revisão de Sanjuán, J. e Cela, C.J. (2005), citada na bibliografia, a que nos referimos em várias ocasiões, e o livro de S.E. Taylor (2002).

No item anterior pudemos ver que a criança pode ser submetida a um estado de ativação do alerta quando se lhe aplicam métodos de deixar chorar. Suomi (1997) pode comprovar em macacos Rhesus que o estado de ativação e alerta pode se tornar crônico e que vai passando de um estado agudo em princípio (que seriam as crises de ansiedade) a um estado de alarme continuado (ansiedade generalizada) ou apresentar uma claudicação (depressão). Nas crianças também é assim. Ainda que haja mais.

Em seguida vamos explicar esses quadros para que você possa observá-los e identificá-los nas crianças. Diante da presença de alguns desses sintomas, o profissional deveria sempre buscar na história clínica do sujeito episódios de abandono ou qualquer outra forma de estresse infantil:

  • Os quadros de ansiedade podem se manifestar na criança porque, uma vez alterado seu equilíbrio cerebral, ocorre uma hiperestimulação contínua de seus mecanismos de alerta e ativação.

Esta hiper-resposta pode lhe provocar pânico excessivo diante de determinados acontecimentos. Os mais frequentes nas consultas de sono são o medo ou a intranquilidade ao ir dormir (sobretudo em crianças maiores ou naqueles que, há algum tempo, foi aplicado um método [de adestramento do sono].

Mas também medo de outras coisas. Nesse sentido existem mães que descrevem seus filhos como sendo excessivamente retraídos socialmente ou medrosos diante das situações mais cotidianas.

Algumas crianças, diante dessa incerteza e medo, necessitam fazer muitos rituais repetitivos que se assemelham a transtorno obsessivo. Neste sentido, podem centrar-se unicamente no âmbito do sono (rituais antes de dormir), mas também fazem rituais para outras condutas da vida cotidiana.

  • Os transtornos de ansiedade nesses casos podem dar lugar posteriormente a quadros depressivos. (Wittchen et al. 2003). Qual seria o mecanismo íntimo de passagem de uma resposta de alerta a uma resposta depressiva? Uma possível explicação seria o já mencionado dano neural.

Outra possibilidade seria que “o excesso prolongado de cortisol provoque mudanças no sistema serotoninérgico com uma alteração para cima na sensibilidade de tais receptores”. (Tafet e Bernardini 2003)[3] Quer dizer, os níveis altos de cortisol (hormônio do estresse) acabam alterando a regulação de serotonina, que é o neurotransmissor chave na depressão.

Se é verdade que os quadros depressivos se manifestam nos adultos mediante uma diminuição do humor, da atividade, apatia, etc, nas crianças as vezes se apresenta de forma oposta, com irritabilidade e com hiperatividade manifesta.[4] 

  • O que é a desamparo aprendido? Seligman definiu em 1975 como um estado de apatia induzido pela experiência reiterada de incapacidade de atuar de modo a conseguir um resultado desejado ou evitar um trauma emocional. Quer dizer, quando a criança assume que, faça o que fizer, nunca conseguira o que quer. Os sujeitos que sentem isso se abandonam a própria sorte e já não “compram briga”. Mostram um mecanismo de desmaio cuja função adaptativa pode ser poupar energia diante de uma situação em que notam que a luta é inútil. Esse desamparo pode se generalizar a outros âmbitos da vida da criança (e posteriormente do adulto que será) dando lugar a sujeitos extremamente dóceis, com pouca assertividade e baixa auto-estima.

  •  Transtornos do apego: quando uma criança é cuidada desde o nascimento por pais “responsivos”, quer dizer, que respondem prontamente a chamada da criança, se cria um apego seguro. Mary Ainsworth o comprovou e definiu num estudo em 1970.

  • Mas quando esses pais não respondem às chamadas e solicitações da criança, o apego sofre modificações.

De um lado, estaria a criança que se sente rechaçada e rechaça. É uma criança exasperada que exaspera mais ao adulto. É uma criança hostil, afetivamente fria e distante: “A arte de amar pouco lhe protege do sofrimento de amar muito”.[5]

De outro, está a criança que se inibe afetivamente. Aprende que quanto menos solicitar a mãe menos rechaçada será por ela. Os bebês podem reagir dormindo mais tempo. Ocorre que essa reação temperamental os protege duplamente, primeiro porque sofrem menos pela carência e não se esgotam se agitando[6] e segundo, porque esses bebês são interpretados por seus pais como fáceis e lhes permitem estar mais tempo a seu lado. Segundo Barudy, conforme crescem, sua esfera emocional se caracteriza por uma inibição psicológica (não demonstram seus sentimentos), mas em outros âmbitos da sua vida tudo pode ir bem porque são dóceis, solícitos e perfeccionistas, ainda que não dêem espaço à intimidade, ao contato afetuoso. 

  • E a síndrome do estresse pós-traumático? Para que uma criança se traumatize por um método de adestramento tem que dar-se como premissas básicas:

Primeiro, que a criança o tenha experimentado de alguma forma (sofrido, presenciado, ouvido…); e segundo, que tenha respondido com temor, desesperança ou horror intenso.[7]

Essa reflexão é importante porque tem pessoas que podem supor que somente a criança a que se aplica um método pode se traumatizar, mas se na casa existem irmãos ou se aplica um método a uma criança em presença de outras crianças, estas também podem ficar alteradas. Assim mesmo, só se traumatizam se respondem com esse temor intenso que mencionávamos. Se uma criança fica tranquila no quarto (é o que acontece com crianças maiores, por isso com elas não se aplica) seguramente não se traumatizará (embora possam apresentar outras alterações como as descritas antes). Pode ser que sofram mas não há trauma.

Outra reflexão importante é a de que o trauma pode se adquirir numa única vez. Não necessitamos mais que uma situação impactante e um sujeito. E, diante de um mesmo acontecimento, cada pessoa pode responder de forma diferente. É por isso que, façam o que fizerem, os pais (acudir de acordo com uma tabela ou quando acreditem, mostrarem-se mais seguros ou menos, etc), as crianças podem traumatizar-se da mesma maneira. E o fato de um irmão não mostrar sinais de SEPT (síndrome de estresse pós-traumático) não quer dizer que o segundo vai ser igual.

Vejam como é uma roleta imprevisível em muitos casos. Os manuais de métodos de adestramento somente estão dizendo: “Façam suas apostas, senhores!”.

 [1] Mause, L. de (1991).

 [2] O trauma e o estresse já foram associados também a diabetes e obesidade em população adulta. Aqui só nos referimos a transtornos em crianças.

 [3] Sanjuán, J. e Cela Conde, C.J. (2005), p. 128.

 [4] VV. A.A. (2002), DSM-IV.

 [5] Cyrulnik, B. (2002), p. 110.

 [6] Cyrulnik, B. (2002), p. 120.

 [7] Véase DSM-IV.

 Bibliografia citada

 Cyrulnik, B., Los patitos feos. La resiliência: uma infância infeliz no determina la vida, Gedisa, Barcelona, 2002.

Mause, Ll., de, Historia de la infância, Alianza Editorial, Madrid, 1991.

Sanjuán, J. e Cela, C.J., La profecia de Darwin: del origen de la mente a la psicopatologia, Barcelona, Ars Médica, 2005.

VV. A.A., “Lactancia materna: guia para profesionales”, Monografias de la AEP, 5, 2004.

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