Perto de completar 58 anos, meu pai começou a agir de modo muito estranho, a ponto de eu temer por sua vida. Passado seu aniversário, ele se recuperou. Dias depois, comentou que seu pai havia morrido, vítima de um ataque de angina, aos 58 anos. Como todos os achavam muito parecidos não só fisicamente mas no temperamento e jeito de ser, meu pai conservara a crença de que morreria como meu avô. O aniversário de 58 anos era uma data simbólica para ele. Como não morreu, deu-se conta de ter importado para si mesmo uma história que não era a dele. Tinha permanecido refém da história de meu avô. Assim esclarecido, meu pai pôde voltar-se para projetos que deixara guardados e que a morte imaginada tornara impossíveis. Ele começou a viver naquele momento, porque a história que podia ver então à sua frente era a de si mesmo.
No filme “Crimes do Coração”, três mulheres, cuja mãe se suicidara não conseguem acertar o rumo de suas vidas enquanto não desmancham a crença de que o suicídio era também o seu destino. Como meu pai e essas mulheres, todos nós agimos da mesma maneira, embaralhando distraídos e constantemente nossas histórias nas dos outros: por identificação, por amor, por medo, por inércia ou porque é próprio dos seres humanos viver a vidas tendo os outros como exemplo. Mas há momentos especiais, em que somos convocados a nos “desmisturar” – a enxergar nossa singularidade e a possibilidade de uma história mais própria, realizada em nosso próprio nome. São os momentos em que nos damos conta de que somos mortais.
Sempre se diz que, “para morrer, basta estar vivo” ou que “ninguém fica para semente”, que “cada um tem a sua hora”…, porém essas verdades soam distantes, como se não nos dissessem respeito. No entanto, por ocasião de alguma doença, do envelhecimento ou da perda de alguém, entendemos o inevitável: nossa vida tem um fim. Morrer deixa de ser um acontecimento fortuito ou acidental. Ele nos pertence como nosso último gesto. Morrer revela-se intrínseco à vida, definindo sua duração. Não são relógios e calendários que marcam o tempo da nossa existência pessoal, mas nossa própria morte. E, no entanto, não há como saber quando e como morreremos. Não há como escapar da morte ou transferir para outros o nosso morrer. Não há como obter dos mortos um exemplo nem algum comentário sobre como é morrer. Sabemos dos sentidos da morte, mas não podemos saber como é morrer.
Ninguém fala da morte sem sentir medo, angústia ou, no mínimo, um incômodo. Daí que evitarmos tocar no assunto (há quem se benza, bata na madeira, sinta um arrepio). Pelo pensamento, contudo, podemos aproximar a morte em idéia, e não em realidade. Se conseguirmos enfrentar e atravessar a aversão imediata que ela nos causa, será possível encontrar um tesouro escondido nas suas trevas. Morre quem nasceu, quem veio à luz do mundo como um indivíduo único, exclusivo, inimitável e cuja tarefa mais elementar é a de emprestar à vida a sua maneira. Entre nosso nascer e nosso morrer, está a estrada a que chamamos existência. Sua travessia coincide com a realização de nossa história peculiar e da pessoa que somos. Evitando aceitar nossa própria morte, evitamos acolher também nossa própria existência e a história que só nós podemos escrever.
Nossa identidade não está no ente que somos, mas na história que realizamos. O morrer abre o viver em nome próprio. Esse é o tesouro enterrado sob o manto escuro da morte. Encontrá-lo nos faz sensíveis a nós mesmos e nos dá liberdade para nos apossarmos da história que, por nascermos, nos foi entregue sob responsabilidade pessoal.
Texto de DULCE CRITELLI, professora de filosofia, autora dos livros “Educação e Dominação Cultural” e “Analítica do Sentido” e coordenadora do Existentia – Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana. Publicado originalmente na Folah de S. Paulo, em 27 de março de 2003.