A criança é um ser desejante?

A criança é um ser desejante

É com grande prazer que compartilho aqui o capítulo de Miriam Rasse, psicóloga em espaços de multi-acolhimento infantil, diretora da Associação Pikler Lóczy – França, sobre o processo de socialização da criança. O texto intitulado “O processo de socialização: Olhar sobre a construção das relações entre crianças no caminho da integração das regras e suas dificuldades”, traduzido livremente pela querida Carmen Orofino, foi subdividido em três partes, publicadas separadamente aqui no blog:

1ª parte – O RECONHECIMENTO DO OUTRO COMO UMA PESSOA TANTO SEMELHANTE COMO DIFERENTE DE SI

2ª parte – O ADULTO MEDIADOR DAS RELAÇÕES ENTRE AS CRIANÇAS

3ª parte – O CAMINHO DA INTEGRAÇÃO DAS REGRAS PARA UMA CRIANÇA PEQUENA

O CAMINHO DA INTEGRAÇÃO DAS REGRAS PARA UMA CRIANÇA PEQUENA 

O processo dinâmico que conduz uma criança pequena a retomar por conta própria uma regra definida pelo seu meio, com suas diferentes etapas e o papel ativo que assume a criança, é longo e complexo. É todo um caminho que a levará da heteronomia (quando a regra vem do exterior) à autonomia (capacidade de dar a si mesmo a regra), que conjuga os fenômenos de maturação, do acompanhamento de todo o entorno da criança bem como um ambiente facilitador.

O processo de integração das regras 

Desde cedo, a criança encontra limites à realização de suas vontades e desejos: ela gostaria de ficar nos braços de sua mãe, mas ela a recoloca no seu berço; ela gostaria de sua mamadeira imediatamente, mas precisa esperar ainda um pouco… Também com os progressos de sua motricidade, de seus deslocamentos e da manipulação dos objetos a criança vai encontrar muitas limitações e proibições em suas explorações: existem objetos que ela não pode tocar, lugares onde ela não pode ir, materiais sobre os quais ela não pode subir, experimentações que ela não pode fazer. Ela encontrará também obstáculos físicos (uma porta fechada, um móvel que ela não pode deslocar) que estão além dos seus próprios limites (ela não consegue arremessar este objeto tão longe ou subir neste módulo tão alto) ou um contexto que regula o tempo de suas atividades (ela deve sair do banho, mesmo que ela esteja brincando tão bem, ou ir dormir, mesmo que queira tanto aproveitar mais um pouco a vida familiar). No seu encontro com os outros, seus pais, as pessoas em seu entorno, seus companheiros, a criança experimenta que alguns de seus comportamentos não são aceitos e que podem suscitar reações de desaprovação, de recusa, de defesa ou de proteção (quando ela utiliza certos objetos, quando ela bate, morde, puxa os cabelos…)

Estas limitações nos seus desejos de conhecer, de explorar, de dimensionar o mundo ao redor ou ainda de experimentar as emoções podem deixá-la “furiosa” porque elas violam a afirmação de sua vontade e a expressão de seus interesses como o seu sentimento de “tudo poder” que acompanha o desenvolvimento do seu segundo ano. Mesmo assim, rapidamente, a criança percebe o que se espera dela em seu ambiente, que ela renuncie certas ações ou ao menos as controle. Porém, o seu “sistema de controle” ainda não está maduro: durante os seus primeiros anos de vida ainda dispõe de poucos meios de controle para se impedir de fazer o que ela tem muita vontade de fazer…

É um processo complexo, que acontece neste período da primeira infância, durante a qual a criança pequena está descobrindo, compreendendo quem ela é e afirmando sua vontade para se sentir reconhecida e existir. Neste período, por vezes ela é invadida por movimentos pulsionais, imperativos,  que lhe “transbordam”, movidos por sua impulsividade: ela quer tudo imediatamente e pouco sabe esperar ou discernir dentre suas necessidades e desejos. A criança pequena que ainda não fala ou fala pouco se expressa, “fala” com seus gestos, seu comportamento e necessitará acessar a função simbólica para transformar seu agir em palavras, para expressar suas emoções, suas preocupações nos jogos simbólicos. Além disso, esta criança tem necessidade de tocar, pegar, manipular, experimentar, de exercer suas capacidades motoras (subir, escalar, correr, saltar, arremessar) para aprender a se conhecer, conhecer o mundo e os outros, para realizar suas aquisições, para construir seus saberes. Ela é dotada de uma extraordinária força vital que a empurra a descobrir, explorar, ir em frente sem “se acomodar” no que ela já sabe e correr riscos para crescer. Impedida em suas experimentações, limitadas na satisfação de sua curiosidade, a criança se sente impedida de ser, de se construir, de crescer: é o seu desenvolvimento cognitivo, a sobrevivência de seu pensamento, de sua vida psíquica, que ela procura “instintivamente” proteger! O encontro destas limitações e as exigências de seu desenvolvimento serão para ela fonte de intensos conflitos internos que é necessário que se compreenda, não tanto para que se deixe de apresentar a ela as regras, mas para que se possa ter empatia e compreensão para com ela.  Também para reduzir possivelmente certas exigências por vezes prematuras, observando suas capacidades naturais ativas e imediatas; olhando para suas necessidades de tempo para integrar e compreender…

Isto significa paciência e moderação da parte dos adultos, dispondo de conhecimentos sobre este desenvolvimento para acompanhar crianças pequenas em seu caminho. Um caminho que é às vezes difícil também para estes adultos que vão ajudá-las nesta contenção que elas ainda não estão em condições de dar a si mesmas. Enquanto isso, como acontece em qualquer outra aquisição, as crianças vão nos mostrando as etapas conquistadas progressivamente neste processo. 

Durante seu primeiro ano o bebê ainda tem pouca consciência das regras e “inconscientemente” poderá voltar muitas vezes a um objeto proibido. A partir do fim do primeiro ano, começo do segundo, a criança vai mostrar que registrou algumas das exigências de seu entorno, como por exemplo, quando se dirige a um objeto proibido e olha para o adulto. Esta manifestação da criança é por vezes percebida por quem está perto dela como um desafio de sua parte, sobretudo por que vem muitas vezes acompanhada de um largo sorriso (que evoca ao “tudo poder”). Mas ela pode ser também percebida como uma primeira manifestação da integração à regra, como um passo à frente (a criança suspende seu gesto) e como um pedido de ajuda (ela olha para o adulto esperando que a regra lhe seja repetida porque se ela a diz para si mesma é ainda um pouco difícil). A criança conhece a regra bem antes de poder respeitá-la, pois ainda não tem maturidade suficiente para tal. Estas duas aquisições não são concomitantes e convém dissociá-las: é importante valorizar o progresso da criança quando ela se aproxima do objeto proibido e nos procura com o olhar: “Sim, você sabe que você não pode tocá-lo” e ajudá-la quando ela ainda precisa e que nos solicita quando nos olha como se nos dissesse: “- Você não quer me dizer novamente que eu não posso tocar nisso? Porque realmente eu estou com muita vontade”, pedindo que se repita a regra para ela. Mesmo para nós adultos às vezes é bem difícil renunciar a algo que temos muita vontade como o tablete de chocolate em cima do armário que nós tínhamos jurado não comer! Então, como é que nós, muitas vezes, queremos que a criança ainda tão pequena seja capaz de se conter? Ou, pode ser que não a consideremos já como um ser que deseja… 

Porém, dando um passo à frente nessa integração das regras, a criança no segundo ano vai colocar em cena, muitas vezes de maneira eloquente, o conflito interno que a mobiliza, dividida entre: 

-renunciar ao seu desejo e à expressão de sua vontade ao ponto de chorar perante seus pais arriscando fragilizar seu sentimento de existência.

– ou realizar sua vontade, correndo o risco de suscitar a desaprovação de seus pais e perder seu amor.

 A criança vai tentar uma gama de conciliações entre ela e os adultos importantes para ela: quando ela toca um objeto desejado e ao mesmo tempo diz “não” a ela mesma balançando energeticamente a cabeça ou usando palavras já é a demonstração de um começo da tomada de consciência de uma proibição formulada pelo adulto! Será necessário esperar a metade do terceiro ano (por volta de dois anos e meio) para que a criança tenha adquirido uma maturidade intelectual (função simbólica) e psíquica (construção de sua identidade, interiorização das imagens e das exigências parentais) para que ela tenha a capacidade de “respeitar” algumas regras simples e constantes relativas às situações ou a objetos precisos. A regra que não é vivida como um “ataque” ao seu sentimento de existência pode ser aceita mais serenamente. Esta etapa é frequentemente precedida por uma capacidade de anunciar as regras aos outros antes de fazê-lo a si mesma… que denota bem um começo da integração.

Piaget, em sua apresentação do desenvolvimento da inteligência, nos lembra que a autonomia no sentido de “dar a si mesmo a lei”, que vem após a heteronomia (quando a lei, a regra, vem do exterior) não chega antes que por volta dos 12 anos! É por isso que com cinco ou seis anos ainda é difícil para as crianças brincar com jogos coletivos sem a presença de um adulto garantindo a regra que já é conhecida por elas.

Mesmo depois dos 12 anos, nossos comportamentos continuam ainda por vezes heterônomos: quando, por exemplo, percebemos um policial na estrada (lembrança da lei por uma pessoa exterior) e tiramos o pé do acelerador, mesmo que nós conheçamos as leis e os limites de velocidade na autoestrada! Porém, nos acontece com frequência esperarmos de uma criança pequena que já seja autônoma aos três anos…

COMO ACOMPANHAR, AJUDAR, GUIAR A CRIANÇA NESTE PROCESSO?

 Integração das regras e tomada de consciência de si 

As regras e limitações em suas atividades, na realização de suas vontades e desejos são vistas pelas crianças pequenas como ameaças ao seu sentimento de existência e à construção de seu ser. Se sentir escutado, reconhecido, levado em conta em sua individualidade sustenta esta construção, conforta o sentimento de ser “eu” e contribui por consequência neste trabalho de integração. 

Durante os primeiros anos se constrói uma primeira etapa de socialização, dita “socialização primária” durante a qual a criança tem necessidade de que as regras lhe sejam apresentadas de acordo com suas capacidades maturativas, negociadas e acompanhadas individualmente. Na construção de sua “socialização secundária” a criança vai pouco a pouco estar pronta para aceitar as regras de forma coletiva.

A realidade desta primeira etapa requer da parte dos adultos e de seu entorno não somente um bom conhecimento pessoal de cada criança e de suas aquisições, mas também a consideração de suas necessidades: a necessidade de escalar desta criança que não pára de subir nas gavetas deste móvel… e que não dispõe possivelmente de outro material no espaço para fazê-lo. Ou aquela outra que não quer se separar de seu brinquedo de estimação para ir para a mesa, possivelmente porque ela acabou de chegar ao grupo e ainda tem necessidade de se sentir suficientemente segura, ou porque hoje ela está triste, cansada, foi contrariada. Por que não encontrar um espaço de “negociação” entre sua necessidade e a expectativa do profissional, lhe propondo, por exemplo, guardar o brinquedo sobre sua cadeira, bem perto dele?

Limitar o número de regras e oferecer muitas possibilidades.

Observando as dificuldades das crianças pequenas confrontadas às regras e limites em suas atividades, será benéfico a todos se se procurar diminuir o número de regras. 

Os estabelecimentos de acolhimento de crianças pequenas, ainda que conhecidos por elas (ao contrário do ambiente familiar) apresentam frequentemente um incalculável número de regras de convivência e de utilização dos objetos. Elas complicam consideravelmente a vida das crianças, que muitas vezes são impedidas e interrompidas em suas atividades… e complicam também a vida dos adultos que têm a sensação de passar seu tempo a dizer “não” se sentindo mais como “policiais” do que como educadores. 

O número de regras pode ser reduzido por uma organização do espaço, sem perigos, no qual a única regra referente à utilização dos objetos seria de não machucar nem a si nem ao outro. Um ambiente facilitador no qual as “barreiras externas” possam materializar a regra ao mesmo tempo em que as “barreiras internas” ainda não estão construídas, para proteger o espaço dedicado aos menores ou aos maiores; para preservar a intimidade de um encontro adulto-criança durante uma refeição ou uma troca… Uma organização pensada para evitar certas tentações: por que, por exemplo, não impedir um armário de ser possível de abrir ao invés de impedir as crianças, ao longo do dia, de abri-lo e fechá-lo já que esta é uma atividade tão interessante para eles, sem contar o prazer de esvaziar o seu conteúdo ou de esconder tesouros? Por que não deixar momentaneamente de lado a garagem de madeira na qual as crianças passam o tempo todo subindo e recolocá-la no espaço quando eles estiverem interessados em utilizá-las como “uma garagem” ou reservá-la ao espaço dedicado aos maiores?

Um espaço diferenciado e de fácil identificação deveria poder ser proposto para as “atividades com regras” (atividades que não podem ser realizadas de outra forma se não conforme as regras de utilização do material, como desenho, pintura, as brincadeiras com água, os quebra-cabeças, os livros…) e às crianças que têm maturidade para absorver estas regras. Cuidando para colocar à disposição das demais crianças outras atividades também interessantes para não suscitar frustrações. 

Talvez nem todas as regras sejam necessárias: será mesmo será que uma criança não poderia utilizar um brinquedo de outra forma diferente da sua “utilização prevista”? Por exemplo, empilhar as peças do jogo de encaixar ao invés ou colocar as peças de Lego no forno como “comidinhas” no lugar de fazer construções, fazer rolar os anéis no lugar de encaixá-los sobre seu suporte… 

Hierarquizar as regras

Nem todas as regras têm o mesmo valor: algumas são estritas e não negociáveis. Elas têm um valor de proibição, como por exemplo: não atravessar a rua sem dar a mão, não jogar os sapatos ou morder outra criança. Outras podem ser negociadas: por exemplo, no momento de trocar a fralda, o adulto pode aceitar que a criança termine sua atividade entrando em acordo com ela e esperando um pouco mais de tempo definindo-o precisamente: “você brinca mais um pouco e você vem trocar sua fralda assim que a troca de fralda de Ettiénne terminar.” Certas regras não pedem uma aceitação imediata nem imperativa: assim, mesmo se a regra é de guardar o quebra cabeça quando se terminar de usar, ele se trata, sobretudo de uma indicação para ser atendida a muito longo prazo: ”venha me ajudar a guardar este jogo” ou “desta vez, eu coloco no lugar este jogo que você se esqueceu de guardar, mas na próxima vez será bom se você lembrar de guardá-lo”. O tom de voz do adulto, mais ou mesmo menos firme, deve poder dar indicações à criança sobre o valor da regra anunciada.

A permanência das regras

 De acordo com os lugares e as pessoas, as regras de convivência podem ser diferentes. Em um lugar novo, ou em presença de uma pessoa que não conhece, a criança pode procurar saber quais são as regras, e testar sua permanência, para assimilar a forma como ela pode agir neste lugar ou com esta pessoa. A transgressão às regras é por vezes vivida pelos adultos como uma ”provocação” (ele nos testa), enquanto que a criança procura referências. Através do seu comportamento, a criança questiona para compreender e ordenar o mundo e poder situar-se nele: Será que esta regra de ontem ainda vale hoje? Será que é a mesma em casa e na creche, na presença desta pessoa ou de outra? As regras instauradas de forma estável e constante vão pouco a pouco fazer parte do ambiente da criança que lhe proporcionam segurança e contenção (como ritual de dormir, por exemplo).

Interrogar-se a respeito do sentido das regras e o significado do comportamento das crianças

Cada regra colocada para um grupo de crianças deveria ser questionada: qual é o sentido desta regra? Ela é realmente necessária? Qual é a sua função? Será que esta criança dispõe de maturidade suficiente para levá-la em conta? E o que ela vai poder aprender para chegar a ser autônoma (saber como se comportar com ela mesma para não se colocar em perigo, como se comportar em seu ambiente e com os outros)? Estas questões são temas de debates apaixonados e apaixonantes das equipes pedagógicas. Elas virão questionar as representações de cada um e suas concepções educativas. É importante que possam ser discutidas em grupo para definir, construir e precisar o projeto pedagógico da instituição. 

Porque, por exemplo, tantas crianças desejam subir no escorregador com um objeto, mesmo que a maioria dos profissionais as impeçam? Impedindo, os adultos desejam preservar a segurança das crianças que correm o risco de “não se segurarem bem para subir e cair, se machucar”. Mas, por que nos preocupamos com as possíveis “faltas de sorte” das crianças? Porque não confiar na criança e em suas capacidades, mesmo desconhecidas, ou ao menos encorajá-las a construí-las: “você pode subir com este objeto, mas preste atenção em você. Será que você vai poder ao mesmo tempo se segurar”? Aprender a tomar conta de si também faz parte da construção da autonomia! A criança leva este brinquedo sobre o escorregador possivelmente para realizar experimentações muito interessantes, como fazê-lo escorregar como ele mesmo escorrega nesse plano inclinado… Destas experiências sensório-motoras a criança caminha em direção à abstração e ao pensamento.

Ao mesmo tempo, jogar os objetos (aqueles que os profissionais impedem para assegurar a segurança de todos) é, para as crianças, uma experiência rica em construção de saberes, uma verdadeira experimentação científica: seguindo o peso dos objetos e a força com que é lançado a trajetória do objeto não será a mesma. É igualmente, sem dúvida, uma maneira da criança descarregar certas tensões… É realmente necessário insistir para que esta criança experimente certo alimento novo ou que ela termine tudo que há no seu prato já que ela não pôde avaliar bem sua fome ao se servir…? Pode ser que esta criança se agite sobre a cadeira ou brinque com seu copo porque é um pouco longo esperar que as outras crianças da mesa tenham terminado seus pratos de comida para ter a continuação de sua refeição… Pode ser que ela não aceite deixar o seu brinquedo no momento de ir se trocar porque ela pensa que pode não reencontrá-lo para prosseguir sua atividade depois da troca… 

O papel do adulto é de ajudar a criança a organizar o mundo entre o que ela pode ou não fazer com os objetos: “você não pode pegar este lenço sujo na calçada, mas você pode recolher pedrinhas” ou com as convenções sociais, culturais, dentro das delimitações entre o público e o privado: “você não pode colocar seu dedo no nariz na frente dos outros, mas sim na sua cama, no seu quarto”. E o mesmo para as atividades de ordem “íntima”, como a masturbação… 

O papel do adulto não é somente de proibir ou aprovar, mas dar à criança as indicações sobre os códigos sociais, de iniciar a criança na vida social e cultural, para que ela aprenda como se comportar no mundo com os outros.  É sempre um acompanhamento da autonomia: saber se “governar” a si mesmo. É um verdadeiro trabalho educativo! 

TRANSFORMAÇÃO E CONTENÇÃO 

Procurar identificar as necessidades, o interesse e o desejo da criança demanda dos adultos a mobilização de suas capacidades de empatia para tentar compreender o que leva a criança a certo comportamento, gesto ou atitude e para ajudá-la a encontrar outra maneira “socialmente aceitável” de satisfazê-la:

Delimitando os limites do possível e o impossível: se nós indicamos a uma criança pequena o material, os objetos nos quais pode subir, e ela certamente será capaz de não subir nos outros. A proibição (não subir) é transformada em limite (“neste aqui você não pode subir, mas nos outros você pode”).

Propondo uma atividade de substituição: “você não pode colocar os objetos na fenda do aparelho de som, se não ele não funcionará mais, mas eu posso lhe oferecer esta caixa com buracos onde você pode introduzir os objetos”; ou lhe propondo um objeto parecido com aquele que ela deseja, mas que já está sendo utilizado por outra criança. É importante e necessário que haja um certo número de brinquedos semelhantes para favorecer as brincadeiras de imitação, para que a criança possa fazer ao lado do outro antes de ser realmente capaz de brincar junto.

É possível que a criança não aceite imediatamente estas proposições e fique com raiva. Mas é importante que ela experimente, ajudada pela tranquilidade do adulto, que sua raiva não abala o adulto nem a relação entre eles. 

É importante que também ela, a criança, se sinta reconhecida em seu desejo “você está com muita vontade de brincar com este vaso”, mesmo se ele não pode acessá-lo “mas você não pode pegá-lo” e percebe o apoio do adulto que procura outra solução para ele “você pode encontrar um pote bem perto de você”. Pouco a pouco, a criança aprenderá a agir melhor face às suas frustrações e a encontrar ela mesma novas soluções, especialmente em um trabalho de transposição (”sublimação”) acessando a função simbólica: ele pode brincar, encenar o que ele não pode realizar na realidade, pode falar o que ele não pode possuir. Essas frustrações passageiras tornam-se então suportes ao desenvolvimento de sua criatividade e de seu imaginário.

Ajudando a criança transformar sua atividade: na caixa de areia, a regra é de não jogar areia em outra criança… porém é o que faz Sophie neste momento. O adulto vai, em primeiro lugar, calmamente, lhe repetir a regra. Se Sophie persiste, o adulto pode lhe sugerir que transforme sua atividade: “Você pode jogar areia um pouco mais longe, onde não há crianças, ou dentro de um balde, uma caixa…”, e sugerir à criança que recebe a areia de “se afastar um pouco para continuar sua atividade tranquilamente”. Somente se estas intervenções não forem suficientes é que o adulto poderá pedir a Sophie que saia da caixa de areia ”porque sua brincadeira está atrapalhando muito às outras crianças”.

Um acompanhamento individual nos momentos individualizados

 A criança pequena tem, portanto, necessidade de ser acompanhada, guiada e ajudada neste seu processo de socialização. Antes que ela seja capaz de assimilar uma regra coletiva (“socialização secundária”) a criança pequena precisa ser acompanhada individualmente em suas aquisições, com regras ajustadas à medida e ao ritmo de suas capacidades maturativas (“socialização primária”), integrando algumas proibições – bem poucas – e protegendo sua integridade e dos outros (não morder, bater…).

Os momentos de encontros individualizados entre o adulto e a criança constituem um contraponto, ocasiões privilegiadas (o tempo do da refeição dos cuidados corporais, das situações de conflito entre crianças quando o adulto se aproxima dos protagonistas direcionando-se a eles de uma forma pessoal…).

A refeição é um momento extremamente codificado socialmente e culturalmente: a maneira de comer, os utensílios utilizados (pratos, copos, talheres, guardanapo) a maneira se sentar corretamente, de se instalar para comer, (ficar sentado à mesa enquanto que a refeição ainda não terminou a ordem dos alimentos servidos…). A criança tem uma tarefa complexa a realizar para satisfazer suas necessidades de forma adequada: estar atento às suas necessidades, seus gostos, seu apetite, significá-los de forma compreensível ao adulto que a ajuda a comer, construir uma relação com este adulto para estar certa de que pode contar com ele para uma ajuda necessária e ajustada.  Progressivamente ela vai ser encaminhada pelo adulto ao contexto social da refeição: a colher proposta pelo adulto, mas que não segue totalmente seus movimentos (quando ele vira cabeça a colher não segue seu movimento), a diversificação dos alimentos e sua apresentação (mixados, em pedaços), o aprendizado de que os alimentos não são para brincar, a utilização sozinha do copo, da colher, depois do garfo e a faca; a função do guardanapo, (no início um babador e depois um guardanapo de mesa), lavar as mãos antes e depois das refeições, não se levantar da mesa ou invadir o espaço de seu vizinho… Esta introdução progressiva de regras demanda uma grande atenção da parte dos adultos para que possam fazer propostas adequadas ao momento do desenvolvimento no qual a criança se encontra: o copo não será deixado à sua disposição, se neste momento a criança brinca de virá-lo, nem a colher se ela a utiliza para bater no seu prato e esparramar os alimentos; o purê não ser será mais oferecido por um tempo se ela demonstra que este novo alimento não lhe agrada; ela não terá mais necessidade de colocar um babador se já come as “sem se sujar” ele poderá limpar seu prato na lixeira caso ela saiba carregá-lo com cuidado; também poderá ir se lavar quando terminar sua refeição, ao perceber que já comeu o suficiente…

Esta situação da refeição, com a proximidade de um adulto atento, procurando se ajustar às suas capacidades evolutivas em uma situação que lhe interessa e que lhe diz respeito particularmente é, para a criança, uma formidável ocasião para “trabalhar” e caminhar em seu processo de integração das regras. Por isso, seria uma pena privar as crianças deste tempo de “socialização primária” acelerando muito as etapas que marcam este processo: no espaço coletivo é durante estas refeições personalizadas que a criança vai trabalhar as regras que lhe permitirão mais tarde de poder compartilhar uma refeição com os outros, de forma autônoma. Isto quer dizer que será capaz de decidir e escolher o que vai comer, em qual quantidade, em que ritmo… dentro de um contexto: o contexto que lhe é proposto pelo adulto (o cardápio adaptado ao seu nível de desenvolvimento, com certos alimentos limitados em quantidade por razões nutricionais, levando em conta o contexto social no qual ela está inserida). 

O momento da troca ou da higiene é também um momento interessante de “trabalho” em torno das regras, em presença de um adulto de referência, que o guia e ajusta estas regras, sem perder de vista o objetivo – não imediato, mas em médio prazo – de sua interiorização pela criança. Estes momentos de cuidado corporal são igualmente uma oportunidade de numerosas aprendizagens: a utilização dos objetos (a luva, o sabonete, escova de cabelo, a torneira, e o pote, a lixeira…) o espaço destinado à higiene (mesmo se a criança está livre em seus movimentos, sua mobilidade está limitada pelo espaço da mesa de troca, do tapete no chão; o vaso fica dentro do toilette…); e também a aprendizagem sobre as relações humanas: tocar e ser tocado em seu corpo, em suas emoções, compartilhando uma tarefa comum para realizar juntos.

 E COM OS PAIS?

 Os pais, com frequência têm dúvidas a respeito das regras que precisam ser colocadas em prática: quais, quando, como? E também sobre as reações, às vezes fortes, de seu filho, que às vezes lhes causam dificuldades: será que eu sou muito severo, pouco? Porque meu filho não me obedece? Não é sempre fácil entrar em acordo entre nós, o casal… Os profissionais certamente possuem conhecimentos a compartilhar com os pais sobre o desenvolvimento da criança e o significado de certos comportamentos e são capazes compreender a confusão, consternação dos pais… Mas, sobretudo, os profissionais podem compartilhar com os pais o que eles percebem, observam no seu filho: seus progressos, sua caminhada neste processo complexo, suas capacidades já demonstradas e o tempo que é necessário para avançar passo-a-passo, apoiado pelos adultos que juntos, pais e profissionais, procuram acompanhá-lo no seu caminho de humanização.

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